Questões de antropologia teológica…(I)

“A COMUNIDADE HUMANA, O RISCO PLANETÁRIO E A ECOLOGIA INTEGRAL: O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS, O QUE PODEMOS, PARA ONDE VAMOS, NO ANO 2020?”
Para melhor enquadrar esta questão do nosso tempo devemos, antes de mais, aprender a interrogar a realidade; no fundo, seguir a máxima de Stephen Hawking, “be curious”. Contudo, é necessária alguma cautela, pois o sábio é aquele que resiste aos regatos sedutores, onde há água que o poderá fazer ficar doente. É-nos exigido um saber performativo, a capacidade de uma linguagem performativa, eficaz, capaz de, como diria Austin, “do things with words”. Nesse sentido, devemos enveredar por uma heurística, um processo de questionamento, de descoberta, e também uma hermenêutica, uma interpretação. Servindo-nos do método indutivo, que parte do concreto para a síntese, recorrendo a várias técnicas, acedemos a processos verdadeiros, mas que não são A Verdade.

Deste modo, vamos adquirindo competências, acedendo à palavra na primeira pessoa (“Les Mots et les Choses”, Foucault). Vivemos um tempo propenso à nostalgia, a um regresso às tribos, às desigualdades, ao útero; uma retrotopia, na qual queremos ir para qualquer lugar, menos para o futuro (Baumann). Pudemos constatar que o ser humano no ano 2020 é vulnerável, pode ser ferido, por natureza; logo, o cuidado de outro é uma categoria fundamental, e a capacidade de amar é fundamento de tudo, como nos recorda a Fratelli Tutti. Vida é amor. Por exemplo, quanto lares clandestinos, onde temos familiares nossos que estão em terra de ninguém? Isso tem que mudar. O tempo presente é “fascinans et tremens” (Otto), e é tempo de sermos loucos, pois, como diz Bellet, “o louco é aquele para quem a realidade se tornou insuportável”. Surge a necessidade de construção de comunidades que procuram a verdade (Polkinghorne), e para isso devemos distanciar-nos para uma melhor análise dos acontecimentos, embora isso não seja verdadeiramente possível. Acima de tudo, neste processo deve existir reciprocidade, pensar “O Si mesmo como um Outro” (Ricoeur). É hora de abrir os olhos, como Adão e Eva, o cego de nascença, os discípulos de Emaús, e S. Paulo; mudar a nossa forma de olhar para criatura, não como boa para mim (perspetiva utilitarista), mas como boa em si (perspetiva essencialista). E lembrar que, como criaturas, há dinâmicas de relação, pois a relação é constitutiva do ser. Para perceber melhor o nosso lugar na criação, voltamo-nos para as narrativas de origem, uma vez que a criatura não tem a sua razão de ser em si mesma, o que leva ao reconhecimento de algo ou alguém que tem a sua razão de ser em si mesmo (causa si), pelo que não lhe podemos chamar criatura, mas Criador. Será importante, para isso, distanciarmo-nos do realismo imagético; a Bíblia não é um relato histórico, assim como não podemos aplicar o método científico a um texto bíblico. As narrativas de criação, de carácter religioso (contexto da tradição hebraico-cristã), apresentam-nos um Deus criador (perspetiva que surge a partir do exílio da Babilónia – 586-538 a.C.); nessas narrativas é possível encontrar marcas literárias próximas das narrativas míticas (cosmogonias) da bacia do Médio Oriente, como a Epopeia de Gilgamesh. Ainda assim, como refere Eliade, o génio da tradição hebraico-cristã foi transformar a história em teofania. Temos então a narrativa de Génesis, uma
cosmogonia e cosmogénese, na qual o hagiógrafo não é testemunha do que está a narrar; progressivamente vai tomando consciência da realidade que o rodeia (processo evolutivo). Trata-se de uma cosmologia subjetiva, (Paul Nothomb) onde é possível vislumbrar algum desencantamento do mundo (Sol passa a ser apenas uma luminária). Encontramos uma criação dinâmica, com a criatura dotada de plasticidade cósmica. No princípio, Deus cria pela Palavra (está criando, ou, como diria Mia Couto, está brincriando), e a Palavra de Deus é performativa; cria o Céu e a Terra (Deus criador da realidade total), do nada (creatio ex nihilo), secundum totam tuam substantiam, e nós somos um momento da criação, rumo à plenitude (creatio continua), um ens ab alio (S. Tomás de Aquino).

Outras cosmogonias falam da criação em violência, como no Enuma Elish; pelo contrário, o bara divino do Génesis cria “en douceur” (Beauchamp). Verifica-se também a ausência total de teogonia (discurso narrativo sobre a origem de Deus), a contrastar com teogonias de Hesíodo. Ao longo do relato bíblico, vai-se fazendo luz na cabeça do hagiógrafo (“Haja luz”), para perceber a realidade progressivamente, e destaca-se a noção de criaturalidade, com graus diferentes de participação na imanência e também na transcendência, mas igualdade fundamental. As criaturas deviam chegar ao Criador através do homem; o homem chega ao Criador através de Cristo; nele, o Reino de Deus já chegou, a nova criação já começou. Colaboramos na nossa criação – “Deus criou-te sem ti, mas não te salva sem ti” (Santo Agostinho). Existe um vestigia trinitatis em todas as criaturas; tudo está ligado por vínculos insondáveis (Laudato Si). É no mistério da encarnação que o Cristianismo do séc. XXI deverá repousar, e numa vida em comunhão, rica em fraternidade e em amizade social, pois está morto quem está só. Devemos apostar numa ecologia integral, em plena consciência que fazemos parte da criação; e nesse horizonte gratificante de relações entre as criaturas começar pelo próximo, pelo outro, por exemplo através de um Pacto Educativo Global, ou de um Rendimento Básico Global. É imperioso evitar que as relações gratificantes deem lugar a relações de medo e escondimento, passado a ver diferença não como limite, mas como limitação, com medo da possibilidade que os outros nos dominem; afinal se eu como o outro, reduzo-o a mim, e fico só (estou morto). A comunidade humana terá, quanto antes, de fazer frente ao risco planetário, e recorrer a uma ecologia integral, e a uma fraternidade para com todos; somos cristãos, queremos ser imagem e semelhança de Deus, e podemos sê-lo, em união com Cristo e com o próximo, para além do ano 2020, para além da pandemia, para além do nosso egoísmo.

 

João Matos * Professor

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