O Papa escondido que nos deixou o caminho do amanhã – Ratzinger, o teólogo alemão mais influente da Igreja Católica nos séculos XX e XXI carregou sempre consigo uma imagem entretanto construída pelos media mas também com o atributo dos seus que no seu rigor racional e analítico mas também na abertura experimental da fé viram um caso de rara compreensão.
Os textos deixados constituem entretanto um tesouro que certamente será aprofundado nos próximos tempos em que se imporá o discurso do futuro imediato da Igrega Católica. O que Ratzinger disse – pouco interessa se o padre, o bispo, o cardeal ou o Papa – vai continuar a ser referência para quem quiser aprofundar a questão.
O arcebispo de Poitiers, Pascal Wintzer referiu Bento XVI ao jornal La-Croix como alguém de uma nuance e simpatia especial muito longe da imagem trabalhada pelos média que convenientemente jogaram o rigor alemão e a autodisciplina como traços de carácter em detrimento da sua obra produzida e mais tarde pelo sinal que deu ao oferecer à Igreja a sua resignação.
Enquanto isso o teólogo Grégory Solari preferiu reter a figura de um papa “falível”, que soube exercer uma “extraordinária liberdade interior” ao renunciar ao seu ofício quando já não se sentia capaz de assumi-lo. Um ato histórico baseado no ensinamento do Vaticano II sobre a Palavra de Deus.

Qual a figura de Bento XVI que vamos recordar?
O teólogo, autor de uma obra que quis precisar as condições da compreensão da fé na virada da pós-modernidade?
Ou a figura do homem da Cúria, ao mesmo tempo apagada e omnipresente durante o pontificado de João Paulo II?
O primeiro papa do norte da Europa numa Igreja forçada pela Reforma a se tornar italiana?
Ou, na direção oposta, o último papa europeu de uma Igreja global dominada pela latinização?
Ou o papa da “missa latina”?
Sem dúvida tudo isso. Era essa a riqueza deste teólogo alemão.
Mas, sobretudo, duas coisas: a figura do papa “falível”, quando Bento XVI renunciou à carga petrina; a figura do papa “trabalhador na vinha do Senhor” quando aparece na sacada de São Pedro no dia de sua eleição.
Nestas duas figuras combinadas está o que constitui, a meu ver, a chave hermenêutica de um pontificado que deve ser lido à luz da constituição Dei verbum (Vaticano II, sobre o Apocalipse). Vá começar com a renúncia.
Extraordinária liberdade interior
O que esta lei abrange? Em primeiro lugar, uma extraordinária liberdade interior face ao poder e, em geral, a tudo o que diz respeito à função petrina e ao seu modo de exercício desde pelo menos a reforma gregoriana.
Num gesto, no espaço de alguns segundos, Joseph Ratzinger pôs fim à Igreja do segundo milénio e lançou uma obra de desconstrução da qual o pontificado de Francisco apenas esboça o alcance. A representação de uma instituição quase identificada com a Revelação (Vaticano I) é substituída pela visão de uma instituição sujeita à Revelação (Vaticano II).
“Falibilidade perante Cristo”
Esta obediência a um maior que a Igreja é exemplificada por um papa: a renúncia de Bento XVI marca magistralmente a passagem da “infalibilidade papal” à possibilidade de “falibilidade papal”, no sentido de que em nenhum momento o exercício e a regulamentação o carisma de Pedro seja isolado daquilo que constitui a sua origem permanente, ou seja, a Palavra de Deus: Jesus Cristo.
Deste ponto de vista, o que o gesto de 11 de fevereiro de 2013 também manifesta é o estado da Igreja – o estado de uma instituição corroída por dentro pelos abusos, que falha em sua missão.
A renúncia é colorida nesta luz com uma dimensão crítica e profética: o que Joseph Ratzinger como papa alemão se distancia, ou o que ele coloca à distância e assim indiretamente denuncia, é o “cativeiro babilónico da ‘Igreja'”. Como Lutero antes dele. Como Francisco depois dele, cuja reforma permanece incompreensível sem o horizonte da renúncia.
O ensinamento do Vaticano II
Mas este ato, por sua vez, permanece incompreensível se o isolarmos daquilo que o tornou teologicamente (e humanamente) possível, ou seja, o ensinamento do Vaticano II sobre a Palavra de Deus, tal como é retomado e aprofundado por Bento XVI na exortação pós-sinodal Verbum domini (2010):
“(50) O Senhor fala a sua Palavra para que seja acolhida (…) (51) A relação entre Cristo, Palavra do Pai, e a Igreja não pode ser entendida como um simples acontecimento do passado; é antes uma relação vital na qual cada fiel é chamado a entrar pessoalmente. A Palavra de Deus permanece conosco hoje: “E eu estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos” (Mt 28,20). »
Uma Igreja Humilde
A escuta da Palavra assumiu o magistério (professor) e o magistério (papa), não como um exercício marginal, mas, ao contrário, como o que constitui para ele a essência da missão da Igreja: “Ali onde o homem, mesmo frágil e pecador, abre-se sinceramente ao encontro com Cristo, aí começa uma transformação radical: «Mas a todos os que o acolheram deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1,12). Acolher o Verbo significa deixar-se moldar por Ele para ser conformado a Cristo, ao «Filho único que vem do Pai» (Jn 1,13) pela força do Espírito Santo. Isso marca o início de uma nova criação. Então nasce a nova criatura, assim como um novo povo. »
É nessa lógica que podemos entender a sua renúncia em 2013; significa que o chamado de Deus, a missão confiada pela eleição dos cardeais se inscreve na vida e no itinerário de uma pessoa.
É certo que um papa já não pertence realmente a si mesmo, o que ainda controla sobre seus horários… mas
na religião da encarnação, aquela que mostra Jesus tão atento à vida concreta de seus contemporâneos, seria
ilógico que as práticas da Igreja levam a formas de desumanização.
O Papa escondido que nos deixou o caminho do amanhã