Olhares: Quem são os mais pequenos?

«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.» (Mt 25, 40) Na família da criação, serão os elementos do mundo natural, também, “pequeninos” aos nossos olhos e o que a eles fizermos, a Jesus fazemos? Talvez sim e talvez não.

O universo é o contexto unitivo onde todos nos inserimos e serve de ponto de referência para compreender o nosso lugar no cosmos. A ecologia como ciência das relações que mostra como tudo no universo está ligado com tudo, ilumina a narrativa cósmica como profundamente relacional. Nada posso fazer ao outro que não faça a mim mesmo. E, como humanos, somos pó das estrelas consciente de si e das limitações naturais. Por isso, através da tecnologia superámos muitos desses limites, sendo essa parte da nossa auto-transcendência e parte do problema que nos levou a muito do ecocídio que nos damos hoje mais conta do que nunca. Um ecocídio que parte do grito da Terra, mas gera, também, o grito dos pobres. Um grito que, em última análise, se une ao grito de Jesus Abandonado na cruz cuja resposta pode estar no regresso à contemplação.

Independentemente das limitações existentes no mundo natural pela sua natureza existencial finita, o acto de contemplação pode levar-nos a uma experiência de epifania, isto é, de manifestação da presença de Deus que nos toca o coração e a inteligência. Por isso, qualquer dano ambiental é um dano à possibilidade que experimentarmos a presença de Deus.

Há um grande receio na personalização do mundo natural pelo receio de entrarmos num certo bio- ou ecocentrismo, pondo a dignidade humana ao mesmo nível que a dignidade de cada elemento da natureza. Mas esse dilema ganha uma nova entoação se pensarmos numa visão cruciforme da vivência moral que partilhamos com o mundo natural. Sugiro que a percepção espiritual se considera a característica humana que compõe a dimensão vertical da vivência moral. E a percepção fraternal compõe a dimensão horizontal da vivência moral por sermos todos criação de Deus e convidados por Ele a ser família.
S. Francisco dirigia-se ao Sol e à Lua como irmãos, criaturas fruto do amor do mesmo Criador. E no relato da narrativa cósmica, se pensarmos bem, nós somos os “mais pequenos”, os que emergiram por último, as crianças deste universo a quem Deus confiou a vocação de levar toda a Sua criação a um acto de louvor único a Ele. Não tanto numa imagem medieval ultrapassada de senhorio ou reinado, mas como sacerdotes e hóstias da criação (porque cristificados em vida) que transformam com a sua existência, através da linguagem do amor, o cosmos em novo céu e nova terra.

A visão cruciforme implica a morte do nosso “eu” que muitas vezes se coloca acima de todas as coisas. Pensamos que as árvores centenárias e as montanhas milenares são somente matéria com valor moral menor do que nós. Exploramos a madeira e extraímos os materiais das rochas para suportar o nosso estilo de vida consumista, sobretudo, dentro de quatro paredes, e corremos o risco de fazer o mundo mais velho e maior do que nós à nossa medida. É desse sono infantil que precisamos, urgentemente, despertar.

O mundo é maior do que nós e isso serve de sinal de que o amor de Deus pela criação é maior do que a nossa imaginação. Por isso, qualquer afastamento deste relacionamento mais profundo que podemos ter com a natureza, acaba por ser um afastamento do amor de Deus que se manifesta através dessa. Que este Tempo da Criação seja o início de um caminho de conversão de cada coração à beleza da família da criação.

 

Miguel Oliveira Panão * Autor * Professor Universitário

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