O século XXI continuou, no seu primeiro quinto de existência, uma tendência que não é de agora, mas que se intensifica com a passagem do tempo: um ritmo de mudança cada vez mais acelerado nos mais diversos campos. O 11 de setembro foi, bem nos primórdios do século, um destes terramotos que abalam crenças e mudam inevitavelmente o curso da História. Quase 20 anos depois, parece impossível que no fim do ano 1999 depois de Cristo se pudesse ter previsto o estado a que chegámos.
Grigori Rasputin, ele próprio envolvido numa data de eventos menos agradáveis no início do século passado, previu a segunda vinda de Jesus Cristo a 23 de Agosto de 2013, após uma tempestade de fogo que acabaria com a maior parte da vida na Terra. Eu própria me lembro do fenómeno 2012, de voltar às aulas em Janeiro de 2013 e de constatar que ninguém tinha sofrido os possivelmente discretos efeitos de um Apocalipse que os Maias haviam previsto para o dia 21 de Dezembro.
E hoje, volvidos 7 anos, parecemos ter sobrevivido. A braços com uma pandemia que vergou a Humanidade, encerramos estes primeiros 20 anos do ainda novo século XXI. Que balanço podemos fazer do que vimos até aqui? É impossível dizê-lo com precisão. Seriam necessárias várias páginas, uma numerosa equipa multidisciplinar, e muito tempo para o fazer, para descrever exatamente o que alcançámos, as lições que aprendemos, os erros cometidos. E há tantas perspectivas em relação a cada ponto, cada passo – em frente ou em falso!
Um relatório com esta importância teria de ser escrito com o maior dos cuidados, em todas as línguas que existem; subscrito por todas as pessoas do mundo (e possivelmente animais, e os bebés subscreveriam também, sem saber o que pensam sequer?); ratificado por todos os chefes de Estado e de Governo (e os Estados que não existem e teimam em querer existir?); elaborado por um grupo com habilitações para tal (e quais os critérios, e quem decide?); teria de agradar a todos, sem excepção. Muitas outras condições teriam de ser garantidas para que, no fim dos trabalhos desta comissão, tivéssemos um balanço absoluto e universal do que foram os últimos 20 anos.
E para quê? Por que razão gastaríamos nós recursos neste relatório utopicamente consensual, esta quimera? Porque o passo seguinte seria inevitavelmente preparar os tempos seguintes. Pegar nos resultados universalmente aprovados e traçar a partir deles um qualquer plano. Para o semestre, ano, década, 20 ou 30 anos, até preparar já o século XXII.
Há algumas décadas, Einstein destruiu com a sua Teoria da Relatividade um pressuposto que guia, no dia-a-dia, a ação humana: a ideia de que o tempo é algo absoluto. Ora, para um cidadão comum, que não deverá sonhar sequer com as experiências necessárias para provar esta Teoria, isto não tem grande impacto. No entanto, arrisco dizer que o abalo da Relatividade a nível conceptual pode equiparar-se ao que causou na comunidade científica.
Se pensarmos um segundo (não absoluto) nas implicações que esta velha-nova ideia traz, não é difícil imaginar uma colossal desconstrução de tudo o que existe. E ainda que Einstein nos diga que são precisas condições muito específicas para que um comum mortal possa começar a perceber as implicações da Relatividade, elas existem e não andam tão longe como se poderia pensar – em órbita a cerca de 400 km do nosso planeta, a Estação Espacial Internacional proporciona aos seus ocupantes a experiência de viverem 0.01 segundos em atraso por cada 12 meses na Terra. É também por causa desta Teoria que se pensa que, para velocidades suficientemente altas – por altas leia-se próximas da velocidade da luz (cerca de 300 000 km/segundo) –, seja possível fazer equivaler, a título de exemplo, um ano de viagem espacial a dez anos passados na Terra.
No dia-a-dia, não é nisto que penso. Não atravesso a rua considerando que me movo tão rápido em relação a um carro que escapo a um atropelamento se a isso me sujeitar, por os nossos referenciais de tempo diferirem a esse ponto. Penso em horários e prazos a cumprir, a nível terrestre – e não a 400 (ou mais!) km de distância. Arrisco dizer que a esmagadora maioria das pessoas também não procura ter sempre presente a ideia de que o tempo não é absoluto.
E por isso, voltando ao documento magicamente consensual que inventei há uns parágrafos – não existe e não existirá. Os 20 anos em análise são uma mera construção nossa, e nada me impediria de matar à partida este relatório se perguntar Mas serão mesmo 20 anos? O debate que podemos gerar em torno desta questão destrói de novo o consenso que foi tão meticulosamente construído. Uma estranha união entre a Física e a Metafísica pode abrir aqui uma fissura. É por este motivo que não se introduz nenhuma das duas numa conversa casual.
Vemos, assim, que é fácil abalar um consenso. Estes têm sempre os dias contados, e vemos isso constantemente. E, no entanto, há quem teime em insistir que há conceitos absolutos, caixas, rótulos, gavetas, o que quer que lhes chamem. O ser humano é tudo menos absoluto; se o tempo não o é, como podemos nós alguma vez presumir que o somos? Nunca se atingirá um consenso absoluto sobre o que quer que seja, porque este é feito de vozes e pensamentos humanos e estamos longe de ser, até na nossa essência, consensuais.
Se me desafio a fazer um balanço dos últimos 20 anos, será sempre assim: uma manta de retalhos. Daqui a 20 anos, poderei fazê-lo outra vez, e será sempre um resultado do género. Porque é de ambiguidades, de dualidades, de passos em frente que também são para trás (e o que é a frente, em que referencial?), de consensos temporários que se rasgam num segundo (absoluto ou não) que se escreve a história da Humanidade. São esses os exemplos que ficam dos nossos antepassados (distantes ou não, é relativo) que, à sua maneira, tentaram preparar o futuro. E se teimo em defender que não há absolutos, há apenas um consenso que quero tomar sempre como (ainda) possível – que aspiremos sempre a fazer melhor. Haverá sempre um futuro, não importa o tempo que ele ainda demora a chegar.
Maria H. Noronha
Estudante da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto