Caminho de Torres: sempre a descer até chegar lá acima

Há tantas formas de interpretar o Caminho como paisagens e sensações invadem o peregrino ao longo da jornada. Não há dois caminhos iguais, nem que repitamos um itinerário até à exaustão. O Caminho é o peregrino e as suas circunstâncias. É assim que interpreto o Caminho de Torres a Santiago de Compostela, que palmilhei na última quinzena de maio.

O primeiro e mais célebre peregrino deste caminho, que liga Salamanca a Santiago de Compostela, foi o escritor e professor universitário de Matemática Diego de Torres Villarroel (1694-1770), que o percorreu em 1737, cumprindo uma promessa feita quando esteve exilado em Portugal. O relato que escreveu é conhecido por “Peregrinación al glorioso Apóstol Santiago de Galicia”.

O Caminho de Torres tem 570 quilómetros. A minha peregrinação incluiu apenas o território português, 306 quilómetros entre Almeida e o Albergue de São Teotónio, em Valença, ligando duas importantes fortalezas portuguesas, na fronteira leste e norte; entroncando o traçado proveniente de Salamanca e o Caminho Central, a principal via jacobeia nacional, em Ponte de Lima. Foram 12 dias a caminhar.

No dia 16 de maio palmilhei 14 quilómetros entre a estação de comboios de Vilar Formoso e Vale da Mula, para um peregrino uma maneira fácil de chegar – e são escassos os transportes públicos até esta região do concelho de Almeida. Foi um prólogo bastante interessante e inesperado, com importância ao nível do património natural e edificado, por exemplo do românico, e passagem pela terra de Eduardo Lourenço, o maior pensador português do século XX, que nasceu na pequena aldeia de São Pedro do Rio Seco.

No dia seguinte, na fronteira sobre a ponte do rio Tourões, em Vale da Mula, comecei a peregrinação. As experiências no Caminho são (quase) todas subjetivas. É essa a sua riqueza. Apesar disso, por facilidade de escrita e de discurso, compartimentei o Caminho de Torres em três gavetas, cuja seleção resulta das experiências concretas desde 12 dias, de cada batida do cajado, de cada olhar, de cada pegada deixada na terra, ou sentida no alcatrão ou calçada. Outros dias, outras alturas, outras companhias, e outras sugestões surgiriam.

O Caminho de Torres a Santiago de Compostela pode dividir-se como esta jornada me ditou que fizesse: “Património Monumental Edificado” – Almeida, Pinhel, Trancoso, Sernancelhe e Moimenta da Beira;

“Património Rural e do Douro” – Moimenta da Beira, Lamego, Peso da Régua e Mesão Frio, e “Património Fundador e Caminho Central” – Amarante, Guimarães, Braga, Ponte de Lima e Valença. Neste caso, como património fundador entenda-se Guimarães (Berço da Nacionalidade) e Braga (antiga capital da Galécia, ligação histórica a Santiago de Compostela por via das relíquias dos santos, e encruzilhada de estradas romanas e caminhos de Santiago).

No conjunto dos primeiros cinco municípios (“Património Monumental Edificado”), sobressaem claramente a fortaleza de Almeida e os castelos das povoações onde terminam as etapas seguintes, mas também há outros elementos patrimoniais relevantes como a Ponte Grande do Rio Côa e ligações à Grande Rota das Aldeias Históricas – o que, naturalmente, não constitui um acaso.

Em Pereiro, no concelho de Pinhel, é indispensável parar no Café São Cristóvão, onde a dona Maria Julieta dá as boas-vindas aos peregrinos. Ela é a única guardiã do espírito do Caminho de Santiago que encontrei até Guimarães. A maneira como fala com os peregrinos, o que oferece e pede deixam sensibilizada qualquer pessoa. Maria Julieta exibe orgulhosa um livro onde os peregrinos registam a sua passagem e fotografias com eles penduradas nas paredes do estabelecimento.

Mais à frente, já em Vila da Ponte, em Sernancelhe, merece destaque o Santuário de Nossa Senhora das Necessidades e a praia aprazível do rio Távora, recantos e detalhes monumentais e recreativos que se repetem ao longo do itinerário.

Nesta primeira parte do Caminho de Torres, uma das maiores dificuldades que se apresenta ao peregrino é a deficiente marcação. Ela existe, mas é escassa. Há trilhos por limpar. É preciso usar GPS com muita frequência, em quase todos os cruzamentos e para entrar e sair das localidades; o que, naturalmente, prejudica o ritmo e o ambiente da peregrinação. É também preciso melhorar a sinalização dos serviços existentes nas povoações entre etapas – a aproveitar pelos peregrinos para reabastecimento porque são escassas as oportunidades.

Em compensação, a hospitalidade da população, a gastronomia (a relação preço/qualidade é imbatível), a qualidade das pensões e residenciais (igualmente com uma boa relação preço/qualidade), o património monumental e a paisagem rural proporcionam extraordinários momentos. Neste primeiro terço do percurso, coloca em relevo sobretudo a agro-pecuária e a pastorícia.

As ligações físicas a Santiago de Compostela são escassas e/ou pouco conhecidas. Pelo que a conexão com o Apóstolo é quase exclusivamente mantida ao nível imaterial. Um peregrino disse-me: “É sempre a descer até chegar lá acima”. Queria ele dizer que o frequente serra-vale-serra do Caminho de Torres acabaria por nos levar a Santiago de Compostela e aos pés do Santo, o ponto mais alto da peregrinação jacobeia.

Em contexto terreno, é um traçado mais para trepadores do que para roladores, que exige alguma resistência e preparação física. É ainda importante notar que há pouco pontos intermédios para abastecimento ou pernoitar, e as etapas são longas e difíceis de encurtar por falta de infraestruturas.

O conjunto de municípios seguintes, que reuni na gaveta “Património Rural e do Douro”, destacam-se pela paisagem natural florestal, a fruticultura e viticultura acauteladas pela mão homem. Não significa ausência de património edificado – basta lembrar Lamego -, mas aqui o que as emoções mais captam são detalhes de um território muito diferente do anterior. Em todo o percurso, o olhar descobre interesses no horizonte ou próximo do trilho. Há pomares enormes de macieiras, castanheiros, cerejais, sabugais, vinhas, pequenas aldeias e grandes quintas e a espantosa região (Vai um Murganheira?) que desemboca na bela ponte medieval de Ucanha com a sua torre fortificada, símbolo do poder do convento cisterciense de Salzedas.

Num recanto de agreste de enorme beleza do rio Varosa, entre Valdigem e Sande, uma ponte de origem romana, chamada pelo povo de “Sala das Audiências do Diabo”, marca de forma fantástica o vale já de si de uma beleza extraordinária. Diz-se que o nome advém de noutros tempos homens desavindos ali terem ajustado contas por questões de honra. O local é verdadeiramente cinematográfico.

O Alto Douro Vinhateiro – Património da Humanidade acompanha-nos nos seguintes quilómetros. Uma recompensa enorme pelo esforço de chegar aos socalcos mais altos das encostas do Douro. O desafio maior encontra-se à saída de Peso da Régua, onde a inclinação é tal que as escadarias tomaram o lugar das estradas – Ou será porque assim são apenas mais uns socalcos?

O último troço do Caminho de Torres, que identifico como “Património Fundador e Caminho Central”, é marcado pela entrada no Caminho Central (Lisboa/Porto/Valença, com variante por Braga) e pelas cidades de Guimarães e Braga, cuja importância é suficientemente conhecida e reconhecida, seja no âmbito das peregrinações jacobeias, da fundação da nacionalidade, ou até de tempos anteriores.

A partir de Guimarães comecei a sentir com maior intensidade a aproximação ao espírito material e imaterial do Caminho de Santiago. Pelo cuidado nas marcações, pelas referências, pelos trilhos bem cuidados, pelos cruzeiros, os nichos com imagens de Santiago, até pelas indicações referentes a bares, albergues ou serviços de táxi. E pela partilha do chão marcado pelas pegadas deixadas ao longo de séculos pelos peregrinos a caminho a tumba do Apóstolo.

Para ultrapassar a Falperra é preciso palmilhar “O Caminho Real para Santiago” (entre Guimarães e Braga), uma enorme subida em pedra no meio da floresta, mais difícil que a serra da Labruja, esta coroada com a conhecida Cruz dos Franceses (ou Cruz dos Mortos), assinalando o local onde a população emboscou soldados franceses que constituíam a retaguarda do exército de Napoleão, em 1809.

A Via Romana XIX do Itinerário de Antonino, que ligava Braga a Astorga por Lugo, ou a torre medieval de Penegate, são apenas pinceladas numa tela que assumiu em definitivo desde Ponte de Lima as características mais conhecidas da peregrinação jacobeia, acentuadas Galiza adentro – trajeto final de 120 quilómetros do Caminho Central, que percorri em 2012 e repetirei em agosto.

O Caminho de Torres a Santiago de Compostela é exigente do ponto de vista físico, com grandes diferenças de altitude, com muito alcatrão e calçada, com poucas povoações intermédias, o que dificulta o reabastecimento e planeamento das etapas, mas com inúmeros locais de interesse, de qualquer ponto de vista, e diferente dos restantes 10 que percorri na última década. É um itinerário com escassos peregrinos, mas que permite agrupar diferentes etapas interessantes para constituir roteiros curtos. No conjunto, será de difícil massificação. O primeiro albergue público existente atualmente fica em Braga.

O percurso está a receber um investimento global de um milhão de euros, cofinanciado a 85% pelo Programa Operacional Regional do Norte, através do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, e junta cinco comunidades intermunicipais com o objetivo de o requalificar, valorizar, e depois solicitar a certificação pelas entidades competentes.

O projeto começou a ser desenvolvido em 2017, denomina-se “Valorização Cultural e Turística do Caminho de Santiago – Caminho de Torres”, é liderado pela Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa, em parceria com as suas congéneres do Alto Minho, do Ave, do Cávado e do Douro. O “1º Congresso Internacional do Caminho de Torres – Caminhos de Santiago” está marcado para 17 e 18 de junho, no Centro Cultural de Amarante – Maria Amélia Laranjeira.

No caminho, onde é de facto importante, (ainda) senti poucos efeitos deste projeto. O que nem é negativo. As intervenções devem estar para o Caminho como os árbitros para o futebol: quanto menos se der por elas melhor. No entanto, as necessárias têm de ser feitas. Com o património rico, diversificado e distintivo que existe desde o rio Tourões à fortaleza de Valença, a arte mais difícil seria incumprir os objetivos.

 

Mais informação em:

http://caminosantiago.usal.es/torres/

https://www.facebook.com/jornalista.carlos.ferreira

http://www.caminhodetorres.pt/construction/ (em breve)

 

Carlos Ferreira

(Texto e fotografia)