“Assunção de Maria”: Um de nós no Céu e Deus no inferno?

Há não muito tempo, o dia da Assunção de Maria era uma das festividades católicas mais esperadas do calendário litúrgico. Nos dias de hoje, afetados que estamos por uma “baixa pressão” mariológica, a maior parte das vezes nem nos apercebemos do mesmo. É apenas mais um dia de Verão, que, na melhor das hipóteses, nos leva à Eucaristia para celebrar algo que, na maior parte das vezes, não entendemos bem, nem em si, nem nas tremendas significações que tem para a nossa vida. É triste que assim seja.

Para a Teologia Católica, mormente a espiritual, há distintos tipos de “morte” no ser humano. As mais importantes destas são tradicionalmente tidas por quatro. Agrupemo-las, por motivos de clarificação (também gráfico-visual) duas a duas.

Em primeiro lugar, temos as duas “mortes biológicas”. Desde logo, a “morte biológicadiária’”, aquela em que, pelos mecanismos próprios do suporte material do nosso ser, muitas células desse mesmo suporte vão perecendo. Depois, a “morte biológicafinal’”, a que resulta no findar global da nossa presente condição existencial.

Em segundo lugar, temos as duas “mortes espirituais”. De um lado, há a “morte espiritualnegativa’”, isto é, aquela a que chamamos desamor e que, decorrendo do nosso egoísmo, nos enreda numa existência alienada da nossa autenticidade, dos demais e de Deus. Do outro, há que referir a “morte espiritualpositiva’”, em que, pelo amor, se vai dando morte àquele já mencionado egoísmo.

É uma evidência pessoal e existencial que a “morte” só se relaciona com a “morte”; com o que alimenta a desagregação e a obscuridade – sejam estas físicas ou espirituais –, donde a morte só mata a morte: a “morte biológicafinal’” a “morte biológicadiária’” – disto podemos estar certos – e a “morte espiritualpositiva’” a “morte espiritualnegativa’” – disto podemos esperar confiadamente, também se considerarmos um derradeiro estado purificativo, em Cristo Jesus, que ocorre “aquando” da “morte biológicafinal’”, sempre que fizermos desta uma oferenda de amor.

No dia da Assunção de Maria celebramos o facto de que a mãe de Jesus, no “momento” da sua “morte biológicafinal’” – a que certamente não foi poupada, para também nisso se configurar, em vista à dispensação salvífica, com o seu Filho –, “entrou” “imediatamente” no Céu, em Deus-Amor. E isto, dado que, ao longo da sua vida e inerente “morte biológicadiária’”, ela viveu numa existência apenas movida por, e orientada ao amor. Por outras palavras, a sua morte – que não é senão a outra face de uma sua Conceção que fez dela “filha” do seu Filho – foi um “sim” pleno à Salvação da Criação pelo Salvador.

Em Maria, o que em nós denominamos de “morte espiritualpositiva’”, não foi senão uma sombra limiar; algo sempre realizado a priori: não para eliminar um egoísmo em si implantado (do qual foi preservada), mas para impedir que o mesmo chegasse a rasgar o seu ser e, instaurando a ilusão da autonomia e da auto-realização, fizesse medrar as três escravaturas prototípicas da humanidade: a da riqueza; a do poder; e a do prestígio.

Se Maria foi toda ela oração e serviço, num diálogo espontâneo de todo o seu ser mais íntimo com todo o ser mais íntimo de Deus e dos demais, a Assunção é a comemoração de que ela morreu em oração; em resposta de amor a um apelo de amor do Deus-Amor, que nela sempre encontrou acolhimento e resposta. É o festejo de uma mera vida humana genuinamente vivificada; de uma mera liberdade humana autenticamente liberta.

Desse modo, na solenidade da Assunção celebramos a realidade de que uma criatura humana – Maria –, no “momento” da sua “morte biológicafinal’”, passou a estar plenamente em Deus-Amor. Não mais apenas, portanto, o se ter Deus maximamente fecundo num mero ser humano, mas este a estar maximamente fecundo n’Aquele. E isto, sem que Maria perdesse qualquer das suas realidades identitárias e expressivas, como se ela tivesse visto diluída a sua pessoa numa qualquer fusão com um divino impessoal e anónimo.

Correlativamente a esta celebração, também se festeja, embora de forma mais discreta e rarefeita, o que, em derradeira análise, permitiu que o evento comemorado a 15 de agosto ocorresse (recordando-se, desse modo, que nada acerca de Maria se refere primeiramente a ela). A saber: a redenção de toda a humanidade por um Jesus que, na Cruz de Morte e Ressurreição, “desceu” aos mais profundos abismos da existência de todos nós para, aí e desde aí, nos “elevar” até Deus.

Festejamos, portanto, a descida vitoriosa do amor do Amor que Deus é a todos os infernos que construímos para nós mesmos, fechando-nos do “lado de dentro” ao amor e – dado que não existimos jamais existencialmente isolados de Deus (isto equivaleria, de algum modo, a uma nossa aniquilação) – arrastando Deus para aí. Sim: Deus – que, por um mistério de amor “louco”, é a primeira e principal vítima dessas circunstâncias – foi até aí para que, como a Assunção de Maria testemunha, nós pudéssemos ir conSigo até Si; para que pudéssemos ser definitivamente familiares de Deus; para que pudéssemos ser totalmente amorizados.

Totalmente diáfana a Deus, enraizada n’Este e disponível para se deixar mover por Ele, graças ao seu amor humilde e à sua humildade amorosa, Maria, tendo na Igreja a sua imagem, tornou-se a vanguarda de todos os crentes no seu Filho. Assim, ela brilha, para todos nós, como uma esperança já transformada em certeza: uma criatura como nós já está toda em Deus. Se Deus, e apenas Deus, é a nossa esperança, e nós somos a Sua esperança, Maria, por todo o seu ser ter estado selado desde dentro pela dinâmica do amor, é o sinal de que poderemos não ter nada de meramente próprio e, consequentemente, passarmos a ser totalmente de Deus e para Deus.

Não é que o Céu, o Deus-Amor, já não esteja em nós. Está. Nós é que, como diz a tradição espiritual cristã, não estamos n’Ele, donde, com Maria e no aquém da Linha do Horizonte do Amor divino que é um Jesus em que “Homem” não é um predicado mas um nome próprio – o “Homem” –, precisamos de nos fazer oração e serviço.

Dessa maneira, e só dessa maneira (em se que vive diariamente na senda da “morte espiritual ‘positiva’” e se vai resgatando Deus dos nossos infernos), deixaremos de ser sorvedouros do infinito e passaremos a ser – já em cada momento presente, assim transformado num pequeno respingo de orvalho de eternidade – uma presença de luz, de vida, de liberdade, de amor. Uma presença na Presença que permitirá que a “morte biológica ‘final’” não nos mate, antes nos entregue definitivamente à Vida.

 

Alexandre Freire Duarte * Professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

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