A definição no calendário litúrgico da Festa da Exaltação da Santa Cruz decorreu da
convergência do enigmático num evento histórico. Segundo a História, logo após o Concílio
Ecuménico de Niceia (325), o Imperador romano Constantino I requereu ao bispo Macário de
Jerusalém que empreendesse as diligências necessárias para descobrir o Santo Sepulcro.
Servindo-se dos dados coligidos anteriormente por Orígenes de Alexandria, e com o ímpeto da
piedade e generosidade de Helena – mãe daquele aduzido imperador –, o Sepulcro do Senhor
foi descoberto cerca de 327. Juntamente com tal achado, também foram encontradas porções
da Cruz onde Jesus foi cruxificado.
Uma vez construída, sobre o Santo Sepulcro, a Basílica da Ressurreição (ou da Santa
Cruz), contendo parte dos mencionados restos da Cruz de Jesus, essa igreja foi dedicada no dia
13 de setembro de 335. No dia seguinte, os aduzidos restos foram dados a ver e a venerar no
exterior desse espaço. Surge precisamente daqui a determinação do dia litúrgico da Festa da
Exaltação da Santa Cruz.
Feitos estes apontamentos históricos, observe-se que, embora o costume litúrgico
romano leve a que se celebre os dois grandes eventos que foram mencionados (a dedicação da
Basílica da Ressurreição e a primeira veneração pública da Santa Cruz após tal dedicação) na
data do segundo, o “vestígio” fundamental que se celebra nessa ocasião é o Santo Sepulcro
desnudado de tudo exceto de si.
Sem o Santo Sepulcro, e este pedagogicamente desprovido (por parte do Senhor) dos
Seus restos mortais, a Sua Cruz não teria qualquer relevo. Sem a Ressurreição do Amor feito
Homem, apontada discretamente pelo Sepulcro vazio, a Morte de Jesus teria sido um fim total.
Deveras, não teria sido apenas a face de visível tristeza de um começo absoluto que naquela
Ressurreição teve a sua outra face: a de invisível júbilo.
Claro que não houve o Domingo da Ressurreição, tal como o conhecemos e no qual
Jesus assumiu a História através da Igreja, sem a Sexta-feira Santa. Todavia, tendo o mesmo
surgido – enquanto expressão da eterna lei interna do amor e, ao mesmo tempo, como o
momento temporal da perceção da Ressurreição do Senhor –, é ele que deu, e dá, o supremo
valor e o máximo sentido ao dia da Morte do Senhor.
Nós, cristãos, e apesar de ainda tantas manifestações em contrário, não somos pessoas
de Sexta-feira Santa – em que Jesus acolheu em Si tudo o que a morte Lhe atirou –, mas de um
contínuo Domingo da Ressurreição – em que Jesus deu tudo à vida a partir de Si. Não somos
pessoas das passageiras trevas santas, mas da eterna luz santíssima.
Recordemo-nos sempre disto: não foi a Cruz que nos salvou. Foi o amor do Senhor, por
Si vivido em todos os instantes da Sua vida, que nos livrou de nós mesmos e de tudo aquilo a
que o nosso egoísmo deu força contra nós. Um amor que, isso sim, ficou maximamente
patenteado nessa Cruz em que todos os átomos do ser de Jesus gritaram a evidência –
aterradora para tal egoísmo narcísico – de que Deus ama mais a cada um de nós do que a Si
mesmo.
Se assim é, não nos deixemos enganar com uma glorificação da Cruz que comporte um
ignorar do Sepulcro despido. Só se glorificando, nas nossas vidas, o vazio espacial do Sepulcro
– génese da mais densa presença da Presença que é o Senhor – é que o essencial de tal Cruz
não acabará, de uma forma ou de outra, por ficar ignorado no concreto da nossa existência.
Sem a vivência dessa Presença, nunca a Cruz se nos afigurará como aquilo que ela
verdadeiramente é. Não apenas o supremo abaixamento no amor que revela a
incomensurabilidade do amor do Deus-Amor, mas isto conquanto somente para ser um
“ganhar balanço” que “antecede” a suprema exaltação nesse mesmo amor. Sim: para Deus
sobe-se descendo-se; mas só se desce porque se sabe que há uma subida a ser feita para o
Baixíssimo (que é o Altíssimo no amor). Glorifiquemos a Cruz e a vida aí dada até ao fim como
condição do Sepulcro vazio, mas não deixemos de exaltar o vazio repleto de Vida do Sepulcro.
Eis um vazio verdadeiro, mas a necessitar de uma rigorosa qualificação: um vazio prenhe
desse mesmo Amor, que revela que, em derradeira análise, nada exceto o Sepulcro (que o
patenteia) está chamado a estar vazio. Um vazio, pois, que comunica uma nova génesis repleta
de uma esperança mais sólida do que nunca, pois grávida desse Amor que transformou, e em
nós transforma, a certeza da morte na inexpugnabilidade da vida.
É esse apontado Amor que nos chama à mais admirável aventura imaginável:
precisamente a de nos esvaziarmos do nosso “ego” para que Deus, finalmente e no lugar de
tal “ego”, possa ser o Deus e a Vida da nossa vida, permitindo-nos entrar na dinâmica do
supremo desprendimento e da extrema bondade. Se assim é, inclusive o Sepulcro vazio na sua
crueza histórica não significa nada se, em nós mesmos, os sepulcros que existem nas nossas
vidas não ficarem espiritualmente vazios dos nossos desamores.
Note-se, porém, que se tal Amor nos chama a isso, fá-lo somente porque nos revela os
sentimentos mais íntimos do coração de Deus. De um Deus que, sendo justamente esse Amor,
não tem nada para nos levar a amá-Lo exceto, e tal como se constata a partir daquele Sepulcro
desocupado do cadáver de Si incarnado, a Ele mesmo numa aparente ausência de Si.
Aparente, sem dúvida, pois se até à Cruz Se podia apreender a Jesus pelos sentidos
corporais, estes eram, não obstante, um forte obstáculo para nos desprendermos das nossas
supostas compreensões de Si baseadas em tais sentidos. Desde o Sepulcro vazio, que deixa
claro que não mais poderemos prendê-Lo, Ele mostra que O podemos viver da forma mais
substancial do que nunca. Uma forma não mais marcada somente pelo “ouvi dizer”, mas
sobretudo pelo “vivi”.
Se Deus-Amor é a resposta às questões basilares da nossa vida, devemos, por
conseguinte, recalibrar, não tanto os nossos esclarecimentos a tais interrogações, mas as
nossas perguntas, as quais devem apontar para horizontes tão amplos que lhas permitam ser
assim respondidas. Não, contudo, pela mera palavra “Deus-Amor”, mas por esta dita através
da transparência do nosso amor feito uma presença cuidadora.
Como cristãos, então, não somos pessoas do “vamos à vida que a morte é certa”, antes
“vamos à morte (à Cruz e às nossas cruzes) que a vida (o Sepulcro Vazio e a nossa existência
em Deus) é certa”. Exaltemos a Cruz como meio para sermos abraçados pela Meta da nossa
vida, sim, mas, pelo menos ao mesmo tempo, glorifiquemos o Sepulcro vazio como sinal dessa
Meta: Deus-Amor.
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Por Alexandre Freire Duarte